Levantamento exclusivo do g1 mostra que menos da metade dos estados especificam, no Boletim de Ocorrência, que os crimes ocorreram em uma zona rural. Violência doméstica no campo: a saga de mulheres para denunciar agressões no meio rural
Em 2022, o Brasil teve pelo menos 32.448 denúncias de mulheres que foram vítimas de violência doméstica e familiar em zonas rurais, aponta levantamento exclusivo feito pelo g1, com dados de Secretarias de Segurança Pública dos estados e Distrito Federal (DF).
Os números, no entanto, devem ser bem maiores. Primeiro porque nem todos os estados especificam, no Boletim de Ocorrência, que os crimes ocorreram em área rural. E as formas de organizar os dados variam (veja abaixo).
Outro problema é que, "nas áreas rurais, há uma subnotificação absurda dos casos de violência doméstica", destaca a pesquisadora Juliana Lemes da Cruz, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que estuda o tema no Vale do Mucuri, no nordeste de Minas Gerais.
Isolamento, vergonha, distância de serviços de saúde e segurança e medo de denunciar são alguns dos fatores que desincentivam as vítimas a buscar ajuda, afirma Juliana.
Como denunciar violência doméstica
Confira a seguir as denúncias de violência contra mulher no campo por estado.
Mapa com número de denúncias
Como os dados foram obtidos
Para obter os dados, o g1 solicitou, via Lei de Acesso à Informação (LAI), os registros de Boletins Ocorrência (BOs) enquadrados nos crimes da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que aconteceram entre 2006 e 2022, em zonas rurais dos municípios.
Os estados que enviaram os dados selecionaram recortes de tempo distintos entre si. O que tinha em comum entre eles eram apenas as informações de 2022. Por causa disso, o gráfico acima tem somente os registros policiais do ano passado.
Outro obstáculo é que cada estado tem uma forma distinta de organizar as informações dos Boletins de Ocorrência. Nem todos utilizam o termo "zona rural" para especificar que o crime ocorreu no campo. Alguns usam o termo "interior", por exemplo.
Para criar uma padronização, o g1 somou apenas os dados dos estados que utilizam o termo "zona rural".
Veja a seguir a situação dos 26 estados mais o Distrito Federal (DF).
Separam os BOs por zona rural (12): Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, São Paulo e Tocantins;
Não separam (5): Alagoas, Distrito Federal, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Santa Catarina;
Não responderam (7): Acre, Amapá, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rondônia e Sergipe;
Amazonas selecionou os BOs de todos os municípios, menos os da capital Manaus;
Ceará organiza os dados de crimes rurais por Interior Sul e Interior Norte do estado;
Pernambuco também separa os registros rurais por interior, levando em consideração o agreste, o sertão e a zona da mata.
Subnotificação de denúncias
O g1 conversou com três moradoras de áreas rurais vítimas de violência doméstica, que relataram os motivos que dificultaram a denúncia e o rompimento com o ciclo de violência (conheça as histórias aqui).
Estes vão desde à falta de apoio familiar e institucional (governos, ONGs, etc), passando por dependência financeira, longas distâncias para chegar nas delegacias e, principalmente, medo de a denúncia não dar em nada.
Muitas mulheres, inclusive, desconhecem que sofrem violência, diz Juliana, do FBSP, que fundou em 2018 o projeto Mulher Livre de Violência (MLV), que leva informações sobre a Lei Maria da Penha a áreas rurais de Minas Gerais.
"A gente viu, nos encontros [do MLV], que muitas mulheres das zonas rurais não entendiam o que era a violência psicológica, moral e patrimonial, por exemplo. Muitas não associavam com uma agressão", diz.
"A violência, em si, acaba sendo mais compreendida quando há uma lesão corporal", acrescenta Juliana, que é pesquisadora na Universidade Federal Fluminense (UFF).
O MLV parou na pandemia e está retomando, aos poucos, as atividades.
Demora no atendimento
O campo tem outras particularidades. Apesar dos avanços nos últimos anos, nem todas as áreas, por exemplo, têm sinal de internet ou de telefonia fixa, o que dificulta a vida da vítima na hora de pedir socorro.
Em seus estudos sobre a violência no nordeste de Minas, Juliana fez uma outra constatação.
Segundo ela, apesar do disque denúncia 190 da Polícia Militar ser muito divulgado como um canal para as vítimas, nem todos os municípios têm postos policiais que recebem, diretamente, as ligações desse serviço.
Dos 60 municípios que integram a 15ª Região Integrada de Segurança Pública de Minas Gerais (RISP), 78,3% não recebem ligações diretas do 190. Essas cidades representam metade da população da região, diz Juliana.
"Sendo assim, dificilmente as campanhas que destacam tão somente o acionamento do 'Disque 190' terão o sucesso almejado. Essa linguagem será rapidamente identificada pelas mulheres como: 'esse serviço não é para mim'", afirmou a pesquisadora, em um dos seus artigos.
Ela explica que uma pessoa que mora em um local sem 190, ao acionar o Disque Denúncia, terá a sua ligação transferida para a cidade mais próxima. "E essa central vai precisar ligar para o policial que está trabalhando [no município da vítima] no dia. Há, nesse caso, uma demora para a vítima ser atendida", ressalta.
O que diz o governo federal
O g1 entrou em contato com o Ministério das Mulheres para saber se o governo tem algum plano para dar suporte às vítimas de violência doméstica e familiar no campo.
Em resposta, o órgão afirmou que está retomando o Programa Mulher Viver sem Violência, que funcionou até 2016, oferecendo, por meio de unidade móveis, atendimento especializado em saúde, segurança pública, justiça, assistência social e autonomia financeira.
"Até 2016, o Programa Mulher Viver sem Violência distribuiu cerca de 60 unidades móveis para as capitais dos estados e DF com o objetivo de atender mulheres vítimas de violência em áreas rurais e de floresta"
"Neste momento, o Ministério das Mulheres está realizando um levantamento dessas unidades móveis, a fim de reavaliar as melhores estratégias para levar o atendimento".
Créditos do especial violência doméstica no campo
Coordenação editorial: Luciana de Oliveira
Reportagem: Paula Salati e Vivian Souza
Coordenação de arte: Guilherme Gomes
Direção de arte e ilustrações: Luisa Rivas e Veronica Medeiros
Roteiro do vídeo: Paula Paiva
Edição do vídeo: Marih Oliveira