Apesar de estar acima do patamar pré-pandemia, o consumo de vinhos não deve crescer em 2023. Produtores apostam na 'joia da coroa', os espumantes, para um réveillon forte e no avanço de brancos no calor do verão. Vista de taça de espumante no pôr do sol da Serra Gaúcha
Marcos Serra Lima/g1
O mercado brasileiro de vinhos segue sonhando com um ano tão bom quanto 2020. E as projeções iniciais da Euromonitor International davam conta que este ano tinha o potencial para que o consumo voltasse a patamares muito próximos ao melhor momento da história para produtores e vendedores brasileiros.
Mas o aviso já foi dado: os números não serão tão bons quanto o esperado. A consultoria não revisa as projeções, mas já alerta que a estimativa virá frustrada. A expectativa agora é de um patamar de consumo próximo aos números de 2022, quando terminou o ano em 382,9 milhões de litros.
No início do ano, a Euromonitor esperava um patamar próximo aos 402 milhões de litros, rivalizando com recorde de 400,1 milhões em 2020. Como mostrou o g1 na época, os vinhos tiveram grande destaque durante a pandemia, pois foram os grandes eleitos para momento de lazer em casa.
Garrafas de espumante durante processo de fermentação.
Marcos Serra Lima/g1
Não chega a ser um momento de lamentação, pois o consumo do ano passado ainda foi 15,8% maior que o último ano pré-pandemia. Mas, de 2022 para cá — com a reabertura mais ampla da economia e o peso da inflação —, o vinho perdeu algum espaço.
Rodrigo Mattos, analista sênior da Euromonitor para o setor, explica que há mais de um fenômeno que explica o recuo, e que eles se espalham por todo o setor de bebidas alcoólicas.
Inflação
O primeiro e principal deles é a condição financeira dos brasileiros. Os últimos anos de inflação alta elevaram o preço de bens essenciais, e reduziram o espaço no bolso para gastos de lazer.
Por mais que a inflação tenha desacelerado bastante (em especial entre os alimentos), itens como gasolina, aluguéis, educação e vestuário ainda seguem trajetória de subida.
Em 2023, vieram as consequências dessas altas inflações dos últimos anos. Por mais que esteja caindo, haja mais emprego, isso ainda não está se convertendo em poder de compra para esses produtos indulgentes.
Mattos lembra ainda que boa parte do mercado é dependente das importações de vinhos chilenos, argentinos, portugueses, italianos e franceses. As operações, feitas em dólar, ficaram sujeitas às flutuações do câmbio e repassadas na hora da venda.
Brinde com espumante
Quan Nguyen/Unsplash
Reacomodação do consumo
Outro ponto importante é uma redução da "euforia". O setor de serviços veio bem no último ano, e a categoria de bebidas alcoólicas não reduziu o passo nos tempos de pandemia — seja pelo consumo em casa ou pelo retorno aos bares, restaurantes e eventos.
Já em 2023, houve um leve "cansaço". O consumidor freou o consumo de álcool em uma reavaliação dos hábitos de beber e um certo retorno à normalidade. Mas há também um reforço da tendência de "beber menos para beber melhor".
"Além disso, o consumidor brasileiro ainda vê o vinho como um produto de ocasiões de 'baixa energia'. As ocasiões de consumo de bebidas alcoólicas dentro do lar acabaram ficando de lado nesse processo pós-pandemia", afirma Mattos.
Clima quente
Por fim, o terceiro ponto é o calor. No mês de setembro, o país teve ondas de temperaturas altas em pleno inverno, que ultrapassavam os 40ºC.
No Brasil, mais de 60% do vinho consumido é tinto, em geral mais adequado para climas amenos. Em dias mais quentes, o consumidor brasileiro ainda não transfere o consumo de tinto para vinhos brancos, por exemplo. O caminho natural é a cerveja.
De onde vem o espumante
Espumantes como 'joia da coroa'
Apesar de o volume de vinho consumido no Brasil estar concentrado nos tintos, os dados da Euromonitor mostram que brancos, rosés e espumantes crescem mais rápido desde a arrancada do mercado.
Os tintos tiveram alta de apenas 6,8% entre 2019 e 2022. A quantidade absoluta, porém, é relevante: passou de 228 milhões para 243,6 milhões de litros anuais.
Os rosés tiveram o melhor crescimento percentual, com alta de 90,5%. A base de comparação, porém, é muito baixa. Nesse intervalo, passaram de 2,1 milhões de litros anuais para 4 milhões.
São os brancos que tiveram maior tração, com aumento percentual relevante de uma base mais considerável. Na mesma janela de tempo, passaram de 42,4 milhões de litros para 75,2 milhões anuais. O aumento é de 77,4%.
Por fim, os espumantes saíram de 25,9 milhões de litros em 2019 para 30,6 milhões de litros em 2022, alta de 18,1%. No caminho, tiveram uma particularidade: caíram na pandemia para depois acompanhar a subida do mercado, porque eventos e celebrações foram interrompidos.
Veja a evolução abaixo.
Mesmo com crescimento mais comedido que os brancos, o espumante é uma grande aposta dos produtores brasileiros por um motivo muito simples: o produto produzido por aqui tem a qualidade do "topo de prateleira" mundial.
André Zangerolamo, sommelier-chefe do Grupo La Pastina, afirma que o país reúne condições ideais de produção de espumantes junto com preço competitivo, mesmo sem figurar entre os grandes produtores mundiais em volume.
Ele garante que os resultados de bons produtores brasileiros estão acima da maior parte dos produtores de Prosecco, no Veneto, e de fabricantes do sul da França. São locais em que, segundo ele, a uva tem um nível mais baixo de acidez e não tem tanto frescor de fruta.
Vemos muitos produtores tradicionais de vinho tranquilo migrando para espumantes, porque sabem do potencial do mercado de espumantes brasileiros.
"Os moscatéis do Brasil competem com os melhores vinhos aromáticos do mundo. Competem com Asti, com vinhos espumantes doces da França. E muitas vezes são extremamente superiores, com DNA brasileiro", afirma Zangerolamo.
O especialista aposta que uma união entre produtores brasileiros e importadores seria benéfico para o mercado do país, seja para aumentar o consumo interno de vinho como para ampliar a visibilidade e distribuição do produto nacional.
Para Júlio Vargas, diretor de vendas da Cantu Grupo Wine, já houve melhora, com o aumento das apostas e ampliação das gôndolas de mercado específicas para a venda de vinhos brancos, rosés e espumantes.
"Parte do papel dos 'players' no mercado — seja dos importadores ou dos revendedores — é ajudar a desenvolver o consumidor. Quando a oferta é pouca, o comprador não vai experimentar coisas novas", diz.
De onde vem o vinho
Fama internacional
Zangerolamo diz que o consumidor brasileiro de vinho ainda se inspira no que está fora do Brasil e se importa em acompanhar tendências. Por isso, se vinho nacional passar a fazer sucesso internacional, ganharia um olhar especial no Brasil. Pois, no exterior, o espumante brasileiro já tem espaço.
"Volto sempre a Portugal com as malas cheias de espumantes brasileiros", diz Frederico Falcão, presidente da ViniPortugal.
Falcão, da associação de produtores do país, fez a confidência ao g1 durante a Prowine, que aconteceu em São Paulo no início do mês. A feira de vinhos se consolidou como a principal da América Latina, e cresceu 32% em espaço para expositores neste ano — uma amostra de como o mercado se aqueceu.
Por lá, produtores, importadores e empresários do setor se encontram para remontar suas cartas e encontrar oportunidades. Nos corredores, a procura por rótulos de vinhos brancos e espumantes comprova a tendência apontada pela Euromonitor: tanto importadores tinham uma gama extensa para mostrar, como produtores brasileiros tinham lançamentos à mão para divulgar.
Estamos focando muito nos nossos espumantes, vinhos brancos e rosés. Serão os produtos que mais estarão em evidência nas comemorações de final de ano e no verão que se aproxima.
O empresário conta que a empresa tem 17 rótulos no portfólio, mas as vendas continuam a se concentrar nas festividades de fim de ano. Cerca de 50% das vendas de espumante da empresa acontecem no último trimestre do ano.
Projeto no Senado quer reclassificação do vinho como complemento alimentar
O principal desafio é convencer o consumidor de que o espumante não precisa estar associado apenas a celebrações e eventos. Para os vinhos brancos, há ainda um desafio extra de quebra de resistência por parte do consumidor e entendimento de que podem ser uma boa alternativa ao calorão.
"Amadurecendo e incentivando o consumo do vinho como um todo, naturalmente essa percepção de valor, de qualidade e de aumento de consumo no vinho branco aconteceria naturalmente", afirma Ricardo Morari, presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE).
Morari conta que o comprador ainda não valoriza o vinho branco ou rosé como um produto de mesmo valor agregado que um vinho tinto. Mas, assim como os espumantes, o tempo e qualidade do produto nacional podem surpreender.
A ABE, inclusive, organiza o Concurso do Espumante Brasileiro. Nesta ano, foram 505 amostras, 10 vezes mais do que a primeira edição em 2001. Dos 30% premiados, todos levaram medalha de ouro.
Ano após ano, o país conseguiu crescer sem perder qualidade, com uma certa identidade, com estilos bem marcados e bem variados, desde espumantes mais frescos, mais jovens, até espumantes mais maduros.
"Foi uma mistura de 'terroir' favorável [terreno e clima da região] e investimento das vinícolas. E de onde se faz bom espumante, pode-se fazer bom vinho branco".