Ex-diretores do Banco Central brasileiro avaliam quais poderiam ser as consequências de não ter uma autoridade monetária na Argentina e como seriam levadas adiante políticas que, hoje, são executadas pela instituição. Javier Milei, candidato à presidência da Argentina, ergue uma nota de dólar com seu próprio rosto
Natacha Pisarenko/AP
O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, tem dado sinais de que vai cumprir o compromisso de campanha de acabar com o Banco Central do país e dolarizar a economia. A medida é considera extrema por economistas.
"Fechar o Banco Central é uma obrigação moral, e dolarizar (a economia) é uma maneira de nos livramos do Banco Central", declarou Milei, na última segunda-feira (20).
O presidente eleito propôs, no entanto, que a moeda adotada por seu governo "seja aquela escolhida pelos indivíduos".
No discurso da vitória, no fim de semana, ele não mencionou essas ações, mas disse que a crise exige medidas drásticas, "sem gradualismos".
O fechamento do Banco Central argentino significa que o país não poderia mais fixar sua taxa básica de juros, instrumento tradicional para tentar conter a disparada dos preços em várias nações, e nem emitir moeda (quantidade de recursos disponíveis na economia).
Com o fim do BC, em tese, o governo também estaria abdicando de uma instituição que emprestasse recursos aos bancos no fim do dia para fechar o seu caixa, e que regulasse o sistema financeiro, evitando operações irregulares, prejuízo aos clientes e eventuais crises de confiança bancárias.
Em sua página na internet, o BC brasileiro diz que sua missão institucional é "assegurar a estabilidade do poder de compra da moeda [controle da inflação] e um sistema financeiro sólido e eficiente".
O g1 entrou em contato com ex-diretores da autoridade monetária brasileira. E perguntou quais poderiam ser as consequências de não ter um Banco Central, e como seriam levadas adiante as políticas que não serão mais executadas pela instituição (veja mais abaixo nessa reportagem).
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Cenário econômico
O novo presidente argentino assume o governo em meio a um cenário adverso, com inflação em torno de 120% — a maior em cerca de 30 anos.
Ao todo, aproximadamente 11,8 milhões pessoas estão abaixo da linha da pobreza, o que representa 40,1% da população do país.
Além disso, a nação vizinha conta com uma dívida externa bilionária, problema que é agravado pela falta de reservas internacionais.
Desde 2019, vigora na Argentina um sistema de controle de câmbios, e vários tipos de câmbio funcionam em paralelo ao oficial.
Para atacar esses problemas, Milei propõe, além da dolarização, reduzir o tamanho do Estado com corte de gastos públicos e venda de empresas estatais — medidas tradicionais do receituário liberal.
"O pressuposto para outros passos, no sentido de dolarização, é que você tenha superávit fiscal [nas contas públicas]. Porque você perderá a capacidade de emitir moeda [sem o BC]. Se conseguir controlar os gastos, vai reduzir o ímpeto inflacionário", disse Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor de Política Monetária do BC entre 1999 e 2003.
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Dolarização da economia
Se for plena, a dolarização da economia representaria a substituição do peso argentino pelo dólar, mas economistas indicam que outra alternativa poderia ser indexar o peso à moeda norte-americana. Ainda não há detalhes sobre o que será feito.
Com a dolarização, o temor é que haja escassez de moeda para pagamentos por cidadãos comuns e empresas. E que isso também possa gerar dificuldades de exportação, dependendo da cotação do dólar e de outras moedas, como o Real, além da perda de atração do setor turístico local.
Tony Volpon, ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC em 2015 e 2016, explicou que, antes de dolarizar a economia, a Argentina teria de apresentar um plano para "estocar" dólares e tornar isso possível. Um caminho seria uma desvalorização adicional do peso, que contribuiria para aumentar as exportações.
"O ajuste seria sem dúvidas recessivo. Contrai a demanda interna para ter um saldo de exportação mais alto. Teriam de reestruturar a dívida deles, parte chinesa e parte do FMI, para ter uma estocagem efetiva. É possível, mas é muito difícil. Passar uma economia que já sofreu tanto por mais um processo recessivo", acrescentou.
Luiz Fernando Figueiredo disse que muitos argentinos têm poupança em dólar, parte dela fora do país. "Quando passa a ter tudo em dólar, passa a contar com parcela do dinheiro que está fora. Situação de hoje está um caos. Não dá pra dolarizar agora, tem de criar as condições para dolarizar. Uma delas é ter dólar suficiente", declarou.
Para ele, a questão tem menos relação com o quanto pode ser gradual essa dolarização e mais com como ter condições de fazer isso direito. "Provavelmente, não tem risco de faltar dinheiro para os pagamentos do dia a dia. Por mais que seja uma agenda muito ousada, é com gente muito boa [economistas]. Não é um pessoal que está começando", concluiu.
Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC entre 2003 e 2006, concordou que a dolarização da economia pode esbarrar no fato de que não há, atualmente, dólar disponível para todas operações no país. "Se está falando de dólar, tem um problema. Se tira liquidez da economia, corre risco de recessão", acrescentou.
Ao mesmo tempo, explicou o economista, o fim do BC também sujeitaria a economia argentina a "flutuações internacionais", como ocorreu no fim da década de 90 — quando o BC brasileiro autorizou uma forte desvalorização do Real por conta da falta de divisas.
Em consequência, a Argentina viu suas exportações ao Brasil caírem, afetando o setor produtivo. "Se perde competitividade, para recuperar tem de passar por um processo de deflação, tipicamente associada à perda de atividade econômica", disse Schwartsman.
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Definição da taxa de juros
Sem o Banco Central, a Argentina abriria mão do tradicional instrumento (taxa de juros) de controle da inflação usado em vários países, como no Brasil. Aqui, por exemplo, o BC sobe os juros para conter a alta de preços — tendo por base em um sistema de metas.
A taxa na Argentina teria como referência os juros norte-americanos. No começo desse mês, o Federal Reserve (o banco central dos Estados Unidos) manteve os juros em uma faixa de 5,25% a 5,50% ao ano. Esse continua sendo o maior nível desde 2001.
Sobre a taxa dos EUA, porém, será cobrado da Argentina um valor adicional chamado de "spread de risco", que estará ligado à percepção dos investidores sobre a economia. Quanto maior for a avaliação de que o país terá dificuldades de honrar seus compromissos, maiores serão os juros cobrados.
O risco-país, indicador que mede a confiança do investidor em relação às nações, soma cerca de 4.177,5 pontos na Argentina. Um ponto base corresponde a 0,01 ponto percentual. Isso quer dizer que, na percepção dos investidores, os juros argentinos estariam cerca de 41 pontos maiores do que as taxas americanas, ou seja, quase em 50% ao ano.
O economista Alexandre Schwartsman lembra que a Argentina já passou por moratórias (calotes) de sua dívida e que, por isso, seu histórico de crédito é ruim. E ponderou que é preciso ajustar suas contas para ganhar a confiança de investidores e conseguir recursos para pagar sua dívida.
"Enquanto não corrige o desequilíbrio fiscal [das contas públicas] gigantesco, qualquer outra coisa vai ter de ser subordinada a isso. Cedo ou tarde vai bater nessa restrição", acrescentou.
Tony Volpon, por sua vez, observou que o governo eleito de Milei vai precisar entrar em acordo com o Congresso Nacional e que também vai precisar do Judiciário para as medidas de ajuste das contas públicas.
"Ele quer diminuir muito o tamanho do Estado, que daria uma posição fiscal mais sustentável. O Estado é muito grande", declarou.
Regulação do sistema financeiro
Com o fechamento do Banco Central argentino, deixaria de haver, em tese, uma instituição que regulasse o sistema financeiro, evitando fraudes, protegendo os clientes e, também, ajudando os bancos a fechar o caixa no fim do dia (operação de rotina, que não está necessariamente vinculada a dificuldades financeiras).
Ainda não está claro se essas atribuições serão repassadas a outros órgãos federais.
No Brasil, o BC também tem o poder de liquidar bancos quando houver "insolvência irrecuperável" ou quando forem cometidas graves infrações, por exemplo.
Notícias ou boatos de instituições com problemas podem gerar, por exemplo, corrida aos bancos pela população em busca de seus recursos. E se não forem contidas, as dificuldades podem motivar um efeito cascata em todo sistema financeiro, afetando a economia por inteiro.
"Isso vai continuar. Pode até chamar de um agência de fiscalização e regulação do sistema financeiro. Não tem como ficar sem isso. Mais fácil é extinguir a parte que era de politica monetária [definição dos juros para conter a inflação]. Mas não dá pra ficar sem [regulação do sistema financeiro]", declarou Luiz Fernando Figueiredo.
Alexandre Schwartsman concorda. "É preciso regular, supervisionar, e fundamentalmente, ser emprestador de última instância [pra fechar os caixa dos bancos]. Te garanto que não vai ser o FED [o BC norte-americano] a fazer isso".
Tony Volpon tem a mesma avaliação. "Essa coisa de acabar com o BC é uma figura retórica. Vai criar outras autarquias, que podem ter outros nomes para fazer a mesma coisa. Pequenos países que dolarizaram ainda têm instituições que tomam conta do setor bancário, de questões de lavagem de dinheiro. Todas essas coisas vão ter que ser feitas", afirmou.
Plano pode dar certo?
Luiz Fernando Figueiredo avalia que o plano econômico de Milei pode dar certo se ele conseguir reformar o Estado, diminuindo seu tamanho e contendo gastos. Em sua visão, isso poderia resultar em ganhos de credibilidade e confiança que estimulem investimentos e empregos.
Para avançar, entretanto, o presidente eleito terá de aprovar as propostas impopulares no Legislativo.
"Sempre pode dar certo. Ele está com uma equipe que parece ser muito boa, e vai ter que ir fazendo, fazendo, fazendo e as coisas meio que dependem uma da outra. O que eu acho que é central é reforma do Estado. Esse é o ponto prioritário, um pressuposto", declarou Luiz Fernando Figueiredo.
Tony Volpon disse que não tem ideia do que pode acontecer, e avaliou que é preciso ver quem será nomeado para os postos-chave da economia. Ele fez uma comparação com Donald Trump, ex-presidente dos EUA, que tinha uma "retórica radical" mas colocou nomes tradicionais nesses postos-chave.
"Se o governo Milei começa com o pessoal do [ex-presidente] Macri, não quer fazer muita aventura. Vai ficar a tensão entre ter um governo com gente que não quer radicalizar e um presidente que quer radicalizar. Outro paralelo é o Guedes com o Bolsonaro. Guedes não é aventureiro. Tem que ver quem será nomeado", disse Tony Volpon.
Alexandre Schwartsman, por sua vez, não está otimista com o plano econômico. Para ele, Javier Milei não chega ao fim do mandato. Com a economia dolarizada, ou câmbio fixo, ele argumentou que o passado pode se repetir, com a economia entrando em recessão — o que dificulta o ajuste das contas públicas —, resultando em um bloqueio de recursos nos bancos (corralito).
"Não tinha dinheiro para pagar todo mundo, então o dinheiro ficava no banco. Se forem por esse caminho, corre o risco de ter uma situação parecida. Quando vai para a repressão financeira, a população não vê a menor graça. Acorda um belo dia e não pode tirar o dinheiro que tem no banco. E aí as pessoas vão para a rua. E na Argentina, quando vão pra rua, a coisa não é fácil", avaliou Alexandre Schwarstman.