Presidente argentino editou medida que altera ou revoga mais de 350 normas em áreas como legislação trabalhista, privatizações e aluguéis sem passar pelo Congresso. Decreto pode ser derrubado por parlamentares ou na Suprema Corte. Presidente da Argentina, Javier Milei, discursa sobre conflitos
Reprodução/Casa Rosada
O presidente Javier Milei usou um decreto —uma decisão unilateral, não submetida ao Congresso— para limitar o direito à greve, abrir margem para privatização de empresas públicas e fazer uma reforma trabalhista na Argentina.
As regras, que alteram 350 normas em diferentes áreas, passaram a valer nesta quinta-feira (21), por meio de um Decreto de Necessidade e Urgência, conhecido pela sigla DNU e previsto para ser usado em "circunstâncias excepcionais".
Ao escolher legislar por decreto, Milei escapa de debater as mudanças previamente com o Legislativo, onde o partido político dele, o Liberdade Avança, é minoria: tem 39 dos 257 deputados e 7 dos 72 senadores.
Na Argentina, os decretos entram em vigor assim que publicados no Diário Oficial, assim como acontece no Brasil. Começa, então, um percurso no Congresso que poderá mantê-los ou derrubá-los.
A decisão de Milei foi criticada por alguns especialistas argentinos, para os quais o decreto é inconstitucional, e pela oposição. Há a chance de a questão chegar à Corte Suprema da Argentina, a quem cabe a última palavra sobre questões constitucionais, a exemplo do Supremo Tribunal Federal brasileiro.
O governo Milei defende a legalidade do DNU: "Está absolutamente correto", disse nesta quinta-feira (21) Javier Herrera Bravo, secretário Legal e Técnico, órgão que dá assessoria jurídica a ministérios e à Presidência da República na Argentina.
Antecessora de Bravo no cargo na gestão de Alberto Fernandéz, Vilma Ibarra disse nas redes sociais que a "Constituição autoriza o DNU para circunstâncias excepcionais de necessidade e urgência". Ela disse que o decreto de Milei "subjuga" a divisão de poderes.
Entenda a seguir o cenário:
O que diz a Constituição argentina
A Constituição argentina estabelece que DNUs podem ser editados "somente quando circunstâncias excepcionais tornam impossível seguir os trâmites ordinários", isto é, quando não é possível esperar um projeto de lei ser discutido na Câmara e no Senado.
Não há autorização para usar um Decreto de Necessidade e Urgência para tratar "normas que regulam matéria penal, tributária, eleitoral ou de regime dos partidos políticos" —o que não foi o caso dos decretos de Milei.
A legislação do país prevê um trâmite depois da publicação de um DNU:
Um decreto presidencial começa a valer logo depois de sua publicação no Diário Oficial – no caso do megadecreto de Milei, na quinta-feira (21);
O documento deve ser encaminhado em até 10 dias para a Comissão Bicameral de Trâmite Legislativo, formada por 8 deputados e 8 senadores, que revisarão o texto;
A comissão tem até 10 dias para enviar o resultado da análise para a Câmara dos Deputados e o Senado;
O decreto só deixa de valer se for rejeitado tanto na Câmara quanto Senado com maioria simples (50% mais um);
Só é possível aprovar ou rejeitar um decreto na íntegra – a legislação não permite fazer mudanças antes da aprovação do documento;
A Suprema Corte da Argentina pode invalidar um DNU se entender que não havia urgência, mas decisões como essa são raras, informou a agência argentina Chequeado.
Críticas ao megadecreto
A decisão de Milei de mudar regras sem passar pela análise no Congresso foi alvo de críticas no país. Para advogados constitucionalistas ouvidos pelo jornal argentino La Nación, o decreto não atende aos requisitos constitucionais.
Eles apontam que Milei avançou sobre as competências do Congresso ao incluir itens que não são considerados urgentes. Há um entendimento de que alguns pontos poderiam ser modificados via projetos de lei, por meio dos quais até poderiam ser estabelecidos regimes de urgência.
O professor de direito constitucional da Universidade de Buenos Aires Daniel Sabsay afirmou ao jornal argentino La Nación que o decreto é inconstitucional e que não tem dúvidas de que o documento será judicializado.
"Não existem circunstâncias excepcionais que a Constituição exige para a edição do DNU", afirmou Sabsay. "Não lembro de uma coisa assim nem na época do [ex-presidente argentino Carlos] Menem, nem no governo militar".
Antonio Maria Hernandéz, advogado constitucionalista e professor na Universidade Nacional de Córdoba, afirmou ao mesmo jornal que um Decreto de Necessidade e Urgência só pode ser usado em "situações extraordinárias":
"O Poder Executivo não pode em nenhum caso, sob pena de nulidade absoluta e insanável, emitir disposições de caráter legislativo. Isso tem a ver com o equilíbrio entre os Poderes", afirmou.
O ex-presidente da Argentina Alberto Fernández afirmou que o decreto é "um evento de extrema gravidade institucional nunca antes visto" e que Milei é responsável "por violar grosseiramente as regras do Estado de Direito".
"O Poder Executivo, num ato de claro abuso de poder, avançou sobre as atribuições exclusivas do Poder Legislativo", disse Fernandez em suas redes sociais.