Milei é devoto da Escola Austríaca e do anarcocapitalismo criado pelo norte-americano Murray Rothbard nos anos 50. Mas como ele pretende aplicar isso na Argentina? Friedrich Hayek, maior expoente da Escola Austríaca
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"Considero o Estado como um inimigo" é uma frase do presidente eleito da Argentina, Javier Milei, que resume em seis palavras seu pensamento econômico.
Autodeclarado libertário, Milei venceu as eleições neste domingo prometendo cortar drasticamente os gastos públicos, desregular a economia, privatizar empresas estatais, fechar o Banco Central, reduzir impostos, eliminar indenizações por demissão e, em última instância, desmantelar os fundamentos do sistema econômico argentino.
Todas são medidas radicais que representam uma guinada de 180 graus na política e economia de um país em crise.
A total dolarização da economia, uma das propostas que causou mais interesse e controvérsia dentro e fora do país, tornou-se o emblema de um economista que se autodenomina um "anarquista de mercado" e despreza o desvalorizado peso argentino. "Não pode valer nem excremento", exclamou, referindo-se à moeda argentina.
Mas, de onde vêm as ideias econômicas de Milei? Ele admite ser um devoto da Escola Austríaca de Economia, uma corrente de pensamento fundada pelo austro-húngaro Carl Menger no final do século 19. Explicamos quem era e quais eram seus princípios econômicos.
O austro-húngaro Carl Menger é considerado o pai da Escola Austríaca
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Os "austríacos", que, apesar de terem diferentes nacionalidades, mantiveram o apelido do local de origem das teorias, acreditam que a liberdade individual é a base do progresso econômico. Isso significa que as decisões econômicas devem ser tomadas por indivíduos e não pelo Estado ou qualquer outra autoridade central.
"Hoje começa o fim da decadência argentina. O modelo empobrecedor do Estado onipresente está chegando ao fim", declarou Milei na noite de domingo ao comemorar a vitória sobre Sergio Massa, ministro da Economia e defensor fervoroso do papel do Estado.
Milei atribui a crise econômica do país ao Estado e à elevada inflação e desvalorização do peso ao Banco Central, propondo a dolarização da economia como solução.
Embora tenha permanecido dentro de um círculo restrito de seguidores, a Escola Austríaca atraiu um renovado interesse na década de 1970, após Friedrich Hayek receber o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas em 1974.
O que geralmente une os seguidores austríacos é a rejeição às teorias econômicas marxistas, keynesianas, monetaristas ou neoclássicas, e sua adesão à ideia de que a ciência econômica deriva da lógica filosófica, sendo possível desenvolver teorias econômicas sólidas a partir de princípios lógicos fundamentais.
Ancorados nessas premissas, seus seguidores defendem fervorosamente o livre mercado e a propriedade privada.
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Quem é Murray Rothbard, o guru de Milei
Um dos grandes expoentes da Escola Austríaca é o norte-americano Murray Rothbard, a quem é atribuída a criação do termo anarcocapitalismo nos anos 50.
O anarcocapitalismo, elogiado por Milei, é uma visão filosófico-político-econômica que emerge das raízes da Escola Austríaca e propõe a completa abolição do Estado em prol da soberania individual por meio da propriedade privada e do livre mercado. Rothbard articulou suas ideias e, em 1971, fundou o Partido Libertário dos Estados Unidos.
"O verdadeiro anarquismo será o capitalismo, e o verdadeiro capitalismo será o anarquismo", afirmou Rothbard em uma entrevista publicada na The New Banner em 1972.
Duas décadas mais tarde, após o fim da Guerra Fria, Rothbard deixou o Partido Libertário e se autodefiniu como um paleolibertário.
Desenvolvido por Rothbard e Lew Rockwell, o paleolibertarismo é uma corrente libertária que adiciona uma perspectiva conservadora no âmbito cultural à visão econômica.
Dessa forma, é criada uma aliança política inédita entre os libertários econômicos e os conservadores americanos, considerada uma estratégia eleitoral concebida por Rothbard e Rockwell para atrair os eleitores do Partido Republicano.
Essa aliança apoiou o pré-candidato paleolibertário republicano Pat Buchanan nas primárias do partido contra George Bush, que acabou prevalecendo e vencendo as eleições presidenciais de 1992.
Naquela época, Rothbard escreveu o ensaio "Populismo de direita: uma estratégia para o movimento paleo", endossando o uso do populismo com o objetivo estratégico de expandir as ideias libertárias, enquanto Rockwell contribuía com o respaldo religioso para sustentar os valores conservadores em torno da família tradicional como unidade básica de uma sociedade livre.
Para alguns pesquisadores, o paleolibertarismo e sua estratégia populista de direita ressurgiram na atualidade com líderes políticos como Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Georgia Meloni, cada um com seu próprio estilo.
Sob essa perspectiva, Milei seria a versão argentina do paleolibertarismo estadunidense, que, por meio de sua companheira de chapa, Victoria Villarruel, incorpora ideias da direita tradicional argentina, como o nacionalismo católico, a oposição ao aborto e a proximidade com o militarismo.
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Como Milei se tornou anarcocapitalista?
Nos primeiros anos de sua carreira como estudante de Economia na Universidade de Belgrano, bem como durante suas pós-graduações no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (IDES) e na Universidade Torcuato Di Tella (UTDT), Milei se considerava um liberal clássico.
"Naquela época, ele era um economista matemático, um neoclássico tradicional", afirma o analista Pablo Stefanoni, que nos últimos anos se dedicou ao estudo do movimento libertário na Argentina e que cursou Microeconomia na Universidade de Buenos Aires com Milei como professor.
Somente em 2013, Milei descobriu a Escola Austríaca, lendo obras de Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek e Murray Rothbard.
Experimentou uma espécie de conversão imediata. "A clareza conceitual dos austríacos é superlativa e domina de maneira muito forte as demais escolas", declarou em uma entrevista publicada em 2017 no jornal Cronista.
"Quando terminei de ler Rothbard, pensei: 'Tudo o que ensinei sobre estruturas de mercado está errado. Está errado!'"
Segundo o economista Juan Carlos de Pablo, Javier Milei adotou a Escola Austríaca "de maneira extrema, mais como um catecismo do que como um pensamento". O economista neoclássico ficou para trás, e nasceu, pelas mãos de Rothbard, o anarcocapitalista.
"Milei adota as ideias de um libertarismo de extrema direita e tenta aplicá-lo na Argentina, algo sem precedentes neste país", destaca Stefanoni. Na Argentina, o Estado desempenha um papel crucial e é um dos grandes empregadores.
Milei já afirmou que, em sua ideia de cortar gastos, deseja fechar vários ministérios. Por isso, durante a campanha, ele apareceu com uma motosserra, símbolo dos cortes que pretende fazer.
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Admiração por Jesús Huerta de Soto
Dentro das grandes correntes econômicas, os seguidores da Escola Austríaca - tanto no passado quanto nos dias atuais - constituem uma minoria.
Apesar de terem ressurgido nos anos 70 com o Prêmio Nobel de Hayek e nos anos 90 nos Estados Unidos com os paleolibertários, atualmente têm poucos adeptos no cenário acadêmico. No entanto, os herdeiros da Escola Austríaca não desapareceram.
Um deles é o acadêmico espanhol Jesús Huerta de Soto, uma das referências que Milei incluiu em seu grupo de gurus.
O presidente eleito é um dos 52 acadêmicos que recentemente prestaram homenagem a Huerta de Soto, o criador de um mestrado em economia sobre a Escola Austríaca na Universidad Rey Juan Carlos.
A homenagem é uma publicação intitulada "Ensaios em Homenagem a Jesús Huerta de Soto", na qual Milei inclui seu escrito "Capitalismo, Socialismo e a Armadilha Neoclássica".
Huerta de Soto enviou uma mensagem de apoio a Milei em 2021: "Envio a você um abraço acadêmico, mostrando minha admiração por todos os seus esforços, pelo trabalho que você realiza, e que continue assim, firme na luta pela liberdade."
Agora, sem maioria no Congresso e enfrentando a resistência das instituições, sindicatos e oposição, resta ver o que Milei fará com o Banco Central, que ele deseja "dinamitar", em suas próprias palavras, e com o restante das propostas para reduzir o papel do Estado na Argentina.